Tabu vs Amália: alguns números sobre o cinema português

A capacidade de “exportação” está reservada ao cinema de autor, o cinema comercial permanece limitado ao mercado interno – é o que resulta da análise da circulação destes dois filmes. Assim se desmistificam discursos sobre o cinema português.

 

 

Nos últimos anos, o cinema português tem vivido tempos controversos. Tem sido assim, na verdade, desde que, ainda durante a ditadura, se iniciaram as regulamentações de protecção ao cinema nacional. Desde a célebre Lei 7/71, e da emergência do novo cinema português, chegou-se a uma conclusão: não há um mercado interno para o cinema português que torne sustentável a existência de um cinema comercial. Mesmo o filme mais rentável dificilmente conseguirá chegar, em linguagem económica, ao seu break-even. Portanto, o cinema português não pode concorrer em mercado aberto com cinematografias de paradigmas industriais; por isso, desde 1971, um núcleo de cineastas que controlou a instituição “cinema” optou deliberada e estrategicamente por “estatizar” o cinema português, colocando-o sob protecção do Estado para que fosse reconhecido como um “bem cultural e artístico” e assim afastá-lo definitivamente das leis do mercado.

Desde então, o cinema português tem sobrevivido com a atribuição de financiamentos a fundo perdido (atingindo apoios à produção com valores anuais médios de 7,5 milhões de euros, entre 2007 e 2014), um modelo “europeu” utilizado em muitos países para protecção do seu próprio cinema. A solidificação deste paradigma aconteceu durante a década de 1990, ao mesmo tempo que, com o advento das televisões privadas, o tecido empresarial do “audiovisual” mudou estruturalmente. Daí que se possa falar da existência de uma indústria audiovisual, que inclui os seus ramos televisivos e cinematográficos, e que constitui um sector de produção com muitos postos de trabalho.

Apesar destas evidentes transformações, o discurso público insistiu num suposto bipolarismo — os “filmes para Bragança” contra os “filmes para Paris”, segundo categorias celebrizadas por Francisco Lucas Pires, então ministro da Cultura e Coordenação Científica — entretanto ultrapassado. Parece, então, que será pertinente usar estas duas categorias operativas para situar a circulação do cinema português e elas serão usadas neste texto para notar que, indelevelmente, as actuais condições mudaram radicalmente. Não queremos, contudo, prolongar uma discussão estéril sobre qual é melhor modelo do cinema português. Neste contexto, junto da opinião pública, o debate tem-se centrado em torno de dois argumentos: a circulação em festivais de cinema internacionais como corolário da qualidade de um filme ou o box office como sinal do interesse do público, insistindo que a percentagem do público português que vê filmes portugueses é a mais baixa da Europa. Os dados oficiais de cada país referentes a 2017 atribuem uma quota de 2,6% ao cinema português no mercado interno, longe dos 35,2% da França ou dos 17,4% da vizinha Espanha nos seus próprios mercados. Estes números têm servido para apimentar a discussão, mas não têm considerado toda a circulação internacional e os novos modos de exibição do cinema no contexto contemporâneo.

Nos sectores da distribuição e exibição, parece claro que o actual estado de coisas se deve a uma gritante falta de regulação e de arbitragem por parte do Estado: ao permitir uma concentração do mercado distribuidor e exibidor num esquema que favorece alguns grupos de interesse e a sua consequente monopolização; ao não garantir quotas para a distribuição e exibição de cinema português ou de outras cinematografias minoritárias no circuito comercial; ao não cumprir a sua função na formação de novos públicos e na garantia de diversidade da oferta; ou ao não aproveitar a televisão pública e os contratos de concessão de televisão em sinal aberto para impor regras claras que promovam a oferta da diversidade cinematográfica.

Neste estado das coisas, gostaríamos de lançar alguns dados para esta discussão, centrando-nos na circulação de dois filmes que têm propósitos diametralmente opostos: Tabu (2012), de Miguel Gomes (produzido por O Som e a Fúria), e Amália — O Filme (2008), de Carlos Coelho da Silva (produzido pela VC Filmes). Com montagens financeiras diversas, tiveram percursos diferentes e que nos podem explicar melhor o estado do “mercado” internacional de cinema, sobretudo relacionando com os modelos de produção, distribuição e exibição.

Seguindo um plano já testado, O Som e a Fúria conseguiu montar uma ousada coprodução internacional para Tabu, com um valor global orçado em um milhão e meio de euros, baseada em vários acordos de coprodução: convenção europeia de coprodução cinematográfica, acordo bilateral de coprodução entre Portugal e Brasil e convenção ibero-americana de coprodução. Com esta montagem financeira, o filme passou a ter o “passaporte” dos países envolvidos na coprodução: Portugal (O Som e a Fúria) detém 50% do filme, o Brasil (Gullane filmes) e a Alemanha (Komplizen Films) 20% cada, e a França com 10% (Shellac Sud). Tabu teve também a participação dos canais de televisão RTP e da ZDF/Arte, assim como apoios públicos do ICA, ANCINE (Brasil), Fundo Regional de Hamburgo (Alemanha), CNC (França), Região PACA (Marselha, França) e do programa Ibermedia.

Esta montagem financeira só foi possível pelo potencial do projecto, mas também graças ao currículo do realizador. Recorde-se que, antes de Tabu, Gomes lançara, com razoável sucesso internacional, Aquele Querido Mês de Agosto (2008), assim como tivera uma longa e premiada carreira nas curtas-metragens. Tabu estrearia mundialmente em Fevereiro de 2012, na Selecção Oficial em Competição do Festival de Berlim, tendo sido muito acolhido pela crítica, recepção que prosseguiu com a capa na Cinema Scope e chamada de capa na Cahiers du Cinéma e na Sight & Sound, para além de presenças em vários tops de 2012: Cahiers du Cinema (8.º), Sight & Sound (2.º), Cinema Scope (2.º), Film Comment (11.º) e The New Yorker (6.º), entre outros. Consequência deste fervor crítico (cerca de 300 artigos na imprensa internacional) foi a presença esmagadora do filme em mais de 70 festivais. Esta apetência para uma circulação internacional (da qual é impossível obter números precisos de espectadores), verteu-se também em vendas internacionais, tornando Tabu, muito provavelmente, o filme português com maior distribuição internacional. A exibição em sala ocorreu em 26 países (dos quais apenas se conseguiram dados de 20 países), com um box office de 395.047 espectadores (dos quais 371.476 fora de Portugal) e uma receita bruta de 3.299.372 €. A distribuição internacional não foi feita apenas em sala de cinema, já que o filme foi editado em DVD em diversos mercados (Portugal, França, EUA, Reino Unido, Alemanha) e esteve disponível online na plataforma streaming MUBI. Em Portugal, o filme está ainda disponível em VOD e foi exibido na RTP e no canal por subscrição TVCine.

No caso de Amália — O Filme, realizado por Carlos Coelho da Silva, e com o propósito de ser uma biografia da vida de Amália Rodrigues, a mais popular cantora de fado portuguesa, o filme foi produzido pela VC Filmes com declarados propósitos comerciais, como afirmou Manuel S. Fonseca, o seu director-geral: “O cinema que queremos produzir na VC Filmes é um cinema narrativo e de forte comunicação com o público. Um cinema que se pretende ligado aos grandes filmes americanos e europeus que converteram o cinema na arte popular do século XX, enchendo salas, motivando acesos debates e modificando comportamentos”. O cinema com forte pendor comercial assenta, neste caso, num conjunto de características específicas, de que Amália — O Filme é um excelente exemplo: um cinema marcadamente de género (o biopic e o filme histórico), construído numa lógica de produtor (é ele que define todas as etapas criativas do filme), com o recurso a argumentistas de tradição literária (Pedro Marta Santos e João Tordo, ambos com experiência de escrita de ficção) e um realizador com forte experiência televisiva (Carlos Coelho da Silva, também autor de O Crime do Padre Amaro, um dos filmes mais vistos de sempre no box officeportuguês). A máquina de produção é muito estruturada, com uma equipa complexa, e com um conjunto de actores reconhecível e popular junto do grande público.

O filme foi feito em coprodução com a RTP, assumindo uma dupla vertente de filme comercial com uma apetência para uma circulação internacional. O orçamento anunciado foi de três milhões de euros (Diário de Notícias, 23-V-2008), apresentando-se como a produção mais cara de sempre do cinema português (PÚBLICO, 13-VIII-2008), com a participação do FICA (Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual). Amália — O Filme acabou por ter uma carreira em sala comercial fundamentalmente nacional, tendo apenas sido distribuído em dois países europeus (Polónia e Holanda), assim como em Israel (Correio da Manhã, 24-VI-2011). O filme fez 224.201 espectadores, dos quais 9.587 foram fora de Portugal, com uma receita bruta de 929.680 €. Com uma circulação também restrita em festivais de cinema, foi lançado em DVD e em plataformas de VOD. Vendeu, em Portugal, cerca de 47 mil unidades (segundo a própria VC Filmes) e foi vendido para distribuição televisiva nos mercados do Médio Oriente, Europa de Leste, Brasil, Luxemburgo e Bélgica.

A análise que aqui fazemos está limitada por problemas de acesso a dados, apesar da existência de algumas bases de dados internacionais. Umas das maiores limitações prende-se com o acesso a dados relativos à exibição comercial em plataformas digitais. Ainda assim, dos dados recolhidos, é possível fazer uma comparação entre dois filmes que se apresentam — da parte das suas produtoras ou dos seus realizadores — como filmes direccionados para públicos diferentes. Estes dados permitem tirar algumas conclusões sobre a capacidade de “exportação” do cinema português, que parece reservada ao cinema de autor e, mesmo nesse universo, apenas a alguns casos especiais. O cinema comercial feito em Portugal não tem demonstrado essa capacidade de internacionalização, provavelmente por falta de uma marca distintiva que seja competitiva face a outros produtos similares de outras nacionalidades, e tem permanecido limitado ao mercado interno português onde é claramente maioritário. Neste aspecto, Tabu mostra, claramente, como o cinema de autor português tem um potencial comercial mais diversificado (a famosa “internacionalização” da indústria audiovisual), enquanto Amália — O Filme, apesar de ser montando para explorar outros mercados, é um produto audiovisual que não tem mostrado capacidade de exportação. Olhar para estes números é desmistificar uma certa falácia económica que sempre ensombra o debate público sobre o cinema português.

Fontes: Base de Dados Lumière, ICA, FilmScope Worldwide, O Som e a Fúria, VC Filmes.
Para dados mais detalhados, ver a versão longa do artigo em https://goo.gl/57G86Q

Daniel Ribas é Professor da Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa / Investigador do CITAR-UCP
Paulo M. Cunha é Professor da Universidade da Beira Interior / Investigador do LabCom.IFP-UBI

(20/07/2018, Publico)