Defesa do Cinema português, por Manoel de Oliveira

Senhora ministra, peço-lhe que pense bem nos problemas que estamos a viver, de modo a encontrar soluções eficazes e justas

Em defesa dos realizadores e dos produtores de filmes portugueses neste difícil momento por que estão a passar, em defesa desta boa causa, tenho a dizer o seguinte:

Os filmes portugueses nunca foram ruinosos para o país e os seus custos cremos serem os mais baixos em relação à maior parte dos países. É certo que o momento é de crise, mas o cinema português está longe de ser motivo de ruína para o país e exactamente pelo seguinte:

Cada um dos nossos filmes move um grupo de actores, outros tantos figurantes e uma equipa técnica completa.

Este conjunto de contratados mexe com transportes, com restaurantes, com hotéis, etc., etc. E toda esta gente, com aquilo que ganha, faz as mais variadas compras com esses pequenos ganhos do seu trabalho, e isto, para além dos gastos que as próprias filmagens são obrigadas a fazer para produzir cada um dos seus filmes.

 

Mais: todos, seja dentro ou fora do filme, pagam impostos e esses impostos, feitas as contas, serão montantes aproximados, se não iguais ou até superiores, ao subsídio que o Ministério da Cultura dá para cada um desses filmes. O que quer dizer que o Estado vem a cobrir ou até a receber mais do que os subsídios que atribui a cada filme.
E quero dizer ainda:

Depois os filmes passam a ser exibidos no país, e quantas vezes vendidos para diferentes outros países, alguns dos meus filmes já passaram por esse mundo fora, em cerca de 27 países, bem como acontecerá com outros colegas, dando a conhecer as nossas expressões cinematográficas e culturais, uma vez que o cinema figura como uma síntese de todas as artes; para além de representar um reforço nos lucros dos produtores, lucros esses favoráveis ao país, como acontece com os livros, com a pintura ou com a música.

 

Assim como as televisões nacionais mostram aos seus países o essencial do que se passa no mundo, o cinema nacional divulga a cultura de cada país ao mundo.

 

Nunca senti ser um “peso” para os governos do meu país. Limito-me a fazer o meu trabalho o melhor que sei e posso para o que sinto ter nascido, tentando questionar os seres, as coisas, a nossa história e o mundo através dos filmes que tive o privilégio de realizar. No tempo da ditadura, fui fazer um curso de fotografia em Leverkusen, oferecido pela Bayer, nos seus estúdios da Agfa. A seguir, fui para Munique, onde comprei na Arnold Richter uma câmara de filmar. Montei numa carrinha tudo o necessário de imagem e som para filmar em qualquer lugar e fiz o primeiro filme a cores revelado pela Tobis Portuguesa: O Pintor e a Cidade que ganhou o meu primeiro prémio no Festival de Cork, a Arpa de Prata. E a seguir filmei sozinho mais quatro filmes, incluído o Acto da Primavera, o único para o qual recebera uma ajuda do SNI, por se tratar de um filme religioso e para o qual tive como meu assistente o malogrado António Reis.

 

Senhora ministra, peco-lhe que pense bem nos verdadeiros problemas que estamos a viver, de modo a encontrar soluções eficazes e justas. Não pergunte quanto ganha um cineasta que por vezes trabalha durante dois anos debruçado repetidas vezes sobre o arranjo do seu guião para o ajustar ao seu reduzido custo de produção, como fora o caso de alguns filmes e em particular do Estranho Caso de Angélica. Nós, realizadores, não temos direito a qualquer reforma. Cada realizador ganha o seu salário só quando filma, sem garantia nenhuma de continuidade. Não pergunte quanto ganha um actor ou um bailarino. Calculo que sabe que não é muito e que a sua derradeira glória poderá vir a ser a de morrer pobre. Pergunte sim, por exemplo, quanto aufere o administrador da Lusomundo/Zon, o abafador, aquele que esconde os nossos filmes, e que não responde mais depois de se assegurar com um contrato, e que não responde nem a nós nem a quem quer ver e mostrar os filmes portugueses.

 

Neste momento difícil, penso sobretudo nos meus colegas realizadores mais jovens. Para eles, estes cortes são profundamente injustos. E penso que, como eu, eles não podem viver sem uma Cinemateca Nacional forte que possa mostrar, hoje e todos os dias, o que é a história do cinema. Não podem viver sem um laboratório de imagem e de som, como o da Tobis, onde há mais de setenta anos faço os meus filmes. Eles precisam de uma lei do cinema que efectivamente proteja o cinema português. E precisam de ser ouvidos para isso. Eles, como eu, sempre viveram na precariedade e na insegurança, sem reforma nem subsídio de desemprego, e sem nunca sabermos se não estaremos a fazer o nosso último filme. Eles, como eu, só temos um desejo: todos ambicionamos morrer a fazer filmes.

 

Carta aberta de Manoel de Oliveira dirigida à então Ministra da Cultura Gabriela Canavilhas. Publicado no jornal Publico a 9 de julho de 2010