Depois de um longo processo, o Governo prepara-se para fazer aprovar, no próximo dia 30, no plenário da Assembleia da República, uma nova Lei do Cinema, desta vez intitulada Lei das Artes Cinematográficas (porquê o plural?) e do Audiovisual.
Do texto desta Lei desaparece o Instituto do Cinema e é criado um denominado Fundo para o Investimento e Fomento das Artes Cinematográficas e do Audiovisual, através do qual o Governo ameaça converter o (pouco) dinheiro disponível para a produção do cinema português no capital de um suspeito negócio a estabelecer com os distribuidores e exibidores americanos e as estações privadas de TV e destinado a financiar projectos com uma suposta “grande atractividade comercial”.
Tais manobras acontecem no momento em que o cinema português, para além de ter reforçado a sua identidade e os seus modos de produção, formou uma massa crítica ampla e extremamente diversificada (como se prova pela crescente qualificação das candidaturas aos concursos públicos do ICAM), composta por jovens autores em início de carreira e cineastas com obra já feita e reconhecida interna e externamente.
Assim, quando todos os indicadores apontam para uma consolidação da cinematografia portuguesa, em torno de uma produção numerosa e diversificada, o Governo pretende agora, num passe de ilusionismo, arruinar os fundos da cultura em negócios duvidosos, estrangulando a produção, produzindo muito menos filmes e muito mais caros, expulsando do sistema dezenas de criadores, em nome de um mirífico “cinema comercial” nacionalista, que em Portugal só deu prejuízo (cultural e financeiro), como continuará a dar no futuro.
A verdade é que nenhum raciocínio económico pode suportar a legitimidade deste cinema “caro e comercial”, nem o Governo – em absoluta e irresponsável navegação à deriva – se apoiou em qualquer estudo prospectivo.
Porque a verdade é que quanto mais dinheiro se investe num filme português mais prejuízo ele causa ; enquanto, pelo contrário, se tem demonstrado a muito melhor “performance comercial” de filmes muito mais baratos, muito mais livres e originais que circulam pelo mundo todo, mobilizando espectadores de gerações, culturas e mercados completamente diferentes.
Para o cinema – como para toda a arte e toda a cultura -, exigimos, assim, um Ministério da Cultura com uma efectiva política cultural e artística e não um Ministério do Negócio.
Não queremos políticas comerciais ou industriais no Ministério da Cultura (ainda por cima, completamente ilegais no quadro dos acordos internacionais do comércio), mas efectivas políticas de protecção e defesa do cinema português, num mercado selvaticamente abandonado aos interesses das grandes produtoras americanas.
Exigimos que o dinheiro do cinema seja para o cinema, que seja disputado em concursos públicos com regras e critérios transparentes, assegurando a liberdade e a independência da criação. Queremos que isto se faça em nome da soberania cultural do país, em nome da ligação do cinema a todas as artes e em nome, também, do património e da identidade de Portugal.
A tal “atractividade comercial” dos filmes “caros” defendida pelo Governo fica demonstrada pela relação custos/receitas dos dois filmes portugueses cujos custos ultrapassaram, nos últimos anos, os 3 milhões de euros: o primeiro “rendeu” nas bilheteiras cerca de 100 mil euros, tendo “realizado” um prejuízo de 2,9 milhões de euros; o segundo não passou dos 50 mil euros, para um prejuízo de 2,95 milhões de euros.
Exigimos do Ministério da Cultura um Instituto do Cinema, com receitas próprias e autonomia administrativa e financeira, assim como queremos uma separação clara entre a arte do cinema (uma só) e os interesses mercantis do audiovisual.
Quarenta anos depois do início do Cinema Novo português, não podemos admitir que o cinema português seja subjugado aos interesses das televisões privadas e públicas nem que o Governo se sirva do estatuto cultural do cinema, para financiar, pela calada – e como se presume pelo tal Fundo de Investimento -, os défices das televisões e a sua crónica incapacidade de produção.
Queremos mais legalidade na Lei. Exigimos que ela seja regulamentada no espírito do seu preâmbulo, proporcionando as condições de produção para mais filmes e mais diferentes, com mais gente a filmar de todas as gerações. E queremos, sobretudo, que o Estado se remeta ao seu papel de garante da liberdade e de defesa intransigente da independência dos criadores e das suas obras. Para que no futuro possamos saber, realmente, o que foi este País, em imagens e sons livres e autênticos, pensados e realizados fora das pressões de agiotas que, desde há muito, nada mais fizeram que hipotecar o imaginário e boa parte da vida dos portugueses aos interesses do cinema americano e às modas da televisão brasileira.
Sacrificar uma cinematografia a tais desígnios é um crime hediondo, incompatível com a história e as regras da democracia e a defesa da liberdade. E tudo indica poder ser este apenas o princípio do fim da soberania cultural portuguesa, um fim anunciado para a sua independência e originalidade, em nome de uma literatura de best-sellers, de uma pintura e de uma escultura decorativas, de um teatro de anedotas, de uma dança folclórica, o regresso, enfim, a um país de analfabetos e ao pesadelo de uma cultura retrógrada, completamente abandonada às conjunturas do mercado e aos interesses dos senhores que o comandam. Viva o CINEMA PORTUGUÊS!